Tenho sede, uma absurda vontade de goles grandes de palavras "malditas" (...)

Crônica por Sulla Mino...Samuel.

Mais uma madrugada passa longa. Eram duas da manhã. A chuva fina caída sem piedade, o céu ainda fechado, sem cor definida e o frio muito.

Sou apenas um homem que vasculha o sombrio das pessoas, deixo inquieto corpos que tentam dormir, mentes que pretendem desprender-se daqui, no momento do sono.

As pessoas desviam olhares de mim, caminham ao contrário na calçada para não serem vistas ao meu lado, sou invisível e carrasco.

Passo despercebido entre a multidão de um bairro, de uma rua, cães ferozes correm a mim, rosnam. Sou perseguido por cacos de vidro, produtos ácidos, hospitalares e nem assim me erguem algum valor ou bônus no final de cada mês.

Nunca recebi um sorriso, mesmo que distraído, acho que por causa da roupa suja que uso, ou das mãos calejadas. O suor no corpo conta muito também. Sou apenas um trabalhador, nada mais.

Tenho sentimentos, a mesma religião que muitos, tenho família e também uma vida social farta, quando estou no meu lazer, sou apenas mais um sem uniforme. O trabalho braçal não é visto com sutileza, triste e verdade. Sou um ignorante perante a sociedade e mais uma sombra que rodeia por aí no mundo.

Sou considerado especial para alguns, tenho data de aniversário no calendário, não sou estes alimentos, conserva usado no Oriente, nem nome requisitado no Judô.

Nesta mesma madrugada de frio e chuva fina intensa, depois de ter corrido metros atrás de um caminhão, no quarteirão da D. Sofia, encontrei no meio da pilha de lixo um lindo urso de pelúcia, entregarei aos cuidados da minha mãe, lavar e fazer uns remendos será novo novamente, um bom presente para ela.

Já estava cansado e fiz minha pausa habitual para uma água, fiquei uns instantes na lanchonete do Valmir e de lá pude contemplar a sacada da janela da Lívia, a mulher dos meus olhos, o meu sonho verdadeiro.

Lívia é a empregada de família há muitos anos, e posso no meu momento de folga e um tanto de solidão, avistá-la e dar com a mão somente um breve “chau”. Todos os dias a mesma rotina. Acho que ela não se importa com minha profissão, com o meu vai e vem, sempre solta um sorriso pequeno, meio tímido pra mim.

Já é dia, a chuva cessa por um tempo, novamente corro atrás do caminhão, faltam alguns quarteirões e já está chegando à hora de ir embora pra casa. Falta varrer a calçada da Dona Amélia e esta semana ainda aparar a grama perto da casa do Mauro. Conheço todos e ninguém sabe de mim.

Se soubessem que sou uma pessoa importante, que prezo pela limpeza do mundo e higiene de todos, saberiam pelo menos, com o amanhecer do dia dizer “bom dia”, já bastaria para eu continuar mais feliz. Um sorriso pouco como a Lívia faz, faria algum sentido. Sou tão intenso desde o tempo do império.

Estudo no horário da noite e faço curso de informática aos sábados, um dia terei coragem de me declarar à Lívia.

Sou Samuel, um gari da cidade de Villus e que também sonha.



15 de Maio-Dia do Gari

Trabalho apresentado pela Denice na UNP-RN

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